domingo, 2 de outubro de 2016

1949 - Goleiro do Grêmio de Santo Ângelo; e Os Bagaceiras

Fotografia dos campeões das Olimpíadas de 1949, eu como goal-keeper do Grêmio de Santo Ângelo; e, agachado à direita na foto, o cunhado Carlos Cerizara, o zagueiro mais calmo do mundo (e o mais enervante pro resto do time).

***

Os Bagaceiras


       Até hoje não encontrei explicação que me convencesse. Como é que surge uma paixão e se torna irresistível? Contra tudo e contra todos?
       Paixão por mulher ou time de futebol não tem diferença. Nasce de repente, cresce e se torna obsessão.
       Na cidade missioneira onde nasci, só tinha dois times. Desde quando? Desde a invasão paraguaia ou ainda antes entre os guaranis? É possível.
       Elite e Grêmio. O primeiro era, o nome já diz ou pretende dizer, o clube da gente bem: famílias de fazendeiros, comerciantes, burocratas, etc. O outro, nem clube parecia, era só uma turma de bagaceiros, a gentinha da cidade.
       O Elite tinha sede social, aliás, perto de minha casa. Dava bailes, fazia reuniões, vesperais dançantes, elegia rainha e princesas. Já o Grêmio não tinha sede, e portanto nenhuma das outras frescuras. O próprio campo onde mandava seus jogos não passava de um potreiro mal cercado, com uma arquibancada carunchosa coberta por um telhado em petição de miséria.
       Pelo contrário, o estádio do Elite, próximo da cidade nova, era bem cercado, com um reservado bem cuidado e pintado.

       Eu era ainda guri quando fui pela primeira vez ver um jogo entre os dois times. Aos domingos geralmente preferia ir ao cinema assistir aos seriados ou faroestes.
       Ao entrar no campo o Elite parecia um time de cidade grande. Calções negros, camiseta negra e branca, em listas verticais, meias brancas e campionas muito bem engraxadas. As moças aplaudiram e suspiraram, atraídas pelos atletas filhos de boas famílias.
       Aí apareceu o Grêmio. Era esse o time? Um bando de caras sem pinta de jogadores, desengonçados. E o uniforme? Uma camiseta verde desbotada e com remendos. Calções brancos em outros tempos, com manchas que sabão nenhum conseguia mais tirar. Meias verdes rasgadas e campionas velhas.
       O contraste era gritante. Vaias e risinhos de desprezo prenunciavam o massacre que foi o jogo: 8 x 1 para o Elite. Os gremistas corriam para todos os lados como galinhas tontas, atrás dos elegantes jogadores do Elite, mas pouco conseguiram. A não ser dar muitas botinadas maldosas, que a torcida recebia com indignação.
       Por algum motivo desconhecido, foi o Grêmio que me atraiu. Senti pena daqueles pobres-diabos, muito inferiores aos adversários, que tentavam desesperados igualar o jogo, inutilmente.
       Voltei a ver outros jogos entre os dois únicos times da cidade. Os resultados continuavam vergonhosos. Era desesperador para os poucos torcedores do Grêmio, como eu. No sábado à noite começava a humilhação. Os jogadores e torcedores do Elite frequentavam os clubes chiques da cidade, bem vestidos e com glostora nos cabelos. Quem torcesse para os bagaceiras -- tão poucos -- era gozado implacavelmente. Isso afetava as relações com as meninas, fiscalizadas pelas mães e pais, a quem não agradava ver as filhas dançando com "gremistas"...
       E as meninas, o que pensavam? Na época eu me sentia constrangido em tentar abordar as mais cobiçadas, para não ser chamado de bagaceira... Tempos depois, tive a revelação do que havia perdido. Elas ansiavam pelos cafajestes e por experiências novas e perigosas.
       Muitas vezes larguei os bailes da burguesia e fui me refugiar na concentração do Grêmio. Apesar do horror com que o vigário anatemizava esses locais, lá me sentia à vontade, e também a maioria dos burgueses hipócritas. Era um quarteirão evitado pelas famílias, chamado Rua do Amor. Nas quatro esquinas e entre elas viviam as putas da cidade e, claro, a maioria dos jogadores do Grêmio. Lá estavam concentradas as vítimas constantes do Elite. Enquanto houvesse fregueses na casa, ficavam bebendo cerveja e sonhando com o futuro. Só conseguiam ir para a cama alta madrugada com a mulher que os sustentava. E isso acontecia seis dias por semana, porque o descanso das segundas era sagrado.
       Eu não perdia jogo entre os dois times, sonhando com o dia da virada, em que o Grêmio iria à desforra.
       Mas era difícil. Como todo gremista, eu admirava os jogadores do time, não sei por quê. O goleiro tinha uma perna mais curta que a outra. Quando ia à cidade, preferia caminhar na sarjeta, para compensar a diferença. E ficava repetindo: -- Aqui é alto, aqui é baixo...
       Casado, com vários filhos, ao sair de casa era acompanhado de longe pela mulher, que não parava de gritar: -- Economia, Percival!
       O center-half (centro-médio) era conhecido por um apelido bem adequado: Galo Cego. Tinha perdido o olho direito numa briga.
       O resto do time ficava num nível intermediário, em que nenhum se destacava.


                                                                                                                        (Nelson Nicolai)

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